terça-feira, 28 de junho de 2016

Sobre as intemperanças da vida
A vida não tem roteiro, mas existem caminhos possíveis para viver bem?

LENILTON JUNIOR

Dizem que a sensibilidade do escritor salta aos olhos do leitor quando o que é escrito sai do coração. As palavras não apenas medeiam a nossa relação com o mundo e com os outros. Basta trocar uma palavra de uma frase por outra que, aparentemente, tem igual significado para perceber que a semântica muda. Do mesmo modo é a vida.

Viver excede qualquer entendimento sistemático de comportamentos, atitudes, pensamentos. É incontável a diversidade de vezes que procuramos nos definir e definir o outro, mas cada um passa por diferentes processos de transformação pessoal. Assim, não há definição que consiga abranger o significado da palavra vida.

O que sabemos é que a todo momento somos desafiados pela vida para que ela tenha sentido. Viver enquanto verbo que exprime ação é receber uma folha em branco que precisa ser escrita com caneta esferográfica, pois não dá para apagar os erros, os tropeços, as intemperanças da vida. Dá para desconstruir e reconstruir significados que se traduzem em mudança de comportamento, atitude e pensamentos saudáveis. Em outras palavras, dá para passar um traço na sentença - que, na maioria das vezes, é ação - escrita sobre o papel da vida.

Mas como efetivamente viver num espaço social em que as palavras já não parecem fazer mais sentido. Se é preciso outras linguagens para dizer o que não se entende, para se fazer ser ouvido - como diz Eliane Brum em O golpe e os golpeados? Como efetivamente viver num espaço em que padrões sociais acorrentam as pessoas e as enrijecem, negligenciando a elas o direito de serem demasiadamente humanas, de respeitar o outro e amá-lo? Que sociedade criamos? Somos réus e ao mesmo tempo juízes, senhores de (in)verdades?

Penso que é preciso mudar, através de pequenos gestos. Sendo diferente. O RESPEITO é o primeiro passo para a mudança de hábitos, quebra de paradigmas. É preciso transformar tabus em totens. Todos nós somos diferentes. Se até na poesia de uma melodia se diz que "paz sem voz não é paz, é medo. " (O Rappa – Minha alma [a paz que eu não quero]), que procuremos viver essa paz através do diálogo sensato, respeitoso, pois é ouvindo o outro e refletindo sobre nossas ações que vivemos mais e melhor.

Entretanto, é válido ressaltar que a decisão advinda após o diálogo com o outro é que define nosso caráter. Ou melhor, são nossas atitudes que IRÃO SINALIZAR as nuances de nossa personalidade. Interessa saber, ainda, que devemos aprender também quando é hora de deixar algumas coisas para trás. Quando optar por novos caminhos não é desistir dos sonhos (quando se sonha), mas é ser resiliente e ter maturidade para reconhecer que existe algo melhor a ser conquistado e, mais ainda, que esse melhor só a alcança quando nós também nos tornamos pessoas melhores.

Certo dia, ouvi alguém falar sobre o processo de construção da mandala que, no Budismo é um tipo de diagrama que simboliza a mansão sagrada, o palácio de uma divindade e é pintada como thangkas, representada em madeira ou metal ou construídas com areia colorida sobre uma plataforma. Quando a mandala é feita com areia, logo após algumas cerimônias, a areia é jogada em um rio, para que as bênçãos se espalhem. Assim, se constrói uma metáfora sobre a vida, pois é também assim que vislumbro a vida. Agora entendo que precisamos desapegar mais das coisas. Aprender a amar sem receber algo em troca é um exemplo tão clichê, mas necessário agora - nesse momento em que escrevo sob o abajur da sensibilidade desperta em mim. Sensibilidade e uma certa dose de racionalidade.

A racionalidade nos ajuda a perceber que o exemplo de vida do outro pode servir como espelho para projetamos as nossas vidas. Mas é preciso que, NO PROCESSO de construção de nossa identidade, deixemos aparecer as nuances de uma personalidade única, singular, aquela que nos torna especiais dentre todas as outras personalidades que existem. Ser autêntico hoje não é comum - Infelizmente. Então, nesse processo, certamente aprendemos coisas importantes, como:

1. Fazer algo pensando que é o que as pessoas gostam não é algo legal, porque as pessoas, na verdade não gostam;

2. Todos nós gostamos de ser surpreendidos;

3. Se, na nossa vida, todas as portas, no sentido metafórico, estão fechadas, precisamos lutar para que, pelo menos, uma delas se abra;

4. Precisamos nos entregar por inteiro aquilo que escolhemos fazer na vida. Isso significa "vestir a camisa" do nosso emprego, sermos responsáveis, honestos, amáveis e sinceros quando nos propomos a fazer algo;

5. Precisamos nos amar também, pois se não dermos valor a nós mesmos, quem vai dar?

6. Precisamos acreditar no nosso potencial.

Colocações desse tipo estão presentes no filme "People like us".  No enredo do filme, um rapaz descobre que seu pai deixou uma herança para uma irmã, até então, desconhecida pelo rapaz. Entretanto, na medida em que o jovem busca encontrar sua suposta irmã, ele descobre a existência de duas famílias: a que o pai dele constituiu com ele e sua mãe, e a que foi construída com a nova irmã dele. Mais do que isso, o protagonista descobre que a sua mãe pediu que o pai dele optasse por uma das duas famílias.  O pai, sem escolha, decide ficar com a esposa e o filho - com quem nunca teve, efetivamente, uma relação de pai e filho -, entretanto, seus pensamentos voltam-se para a garota, hoje mulher, que viveu boa parte de sua vida, sem o pai. E que possui um filho, seu sobrinho. Inicia-se, então, a atividade de reflexão crítica do telespectador sobre o que está sendo colocado na obra fílmica: as intemperanças da vida e a forma como cada um lida com elas.

Sem dúvida, a obra cinematográfica, a começar pelo título, nos instiga a refletir sobre a nossa vida: momentos de alegria, tristeza, os dilemas familiares que ultrapassam a dimensão do particular e interferem no âmbito do trabalho e nas relações sociais estabelecidas com as demais pessoas. A literatura também proporciona isso, muito embora sua finalidade seja a fruição a partir do trabalho estético.

Saibamos todos que é possível realizar aquilo que eternizado na voz de Édith Piaf deve fazer parte do nosso cotidiano: "Je ferai un domaine/ Où l'amour sera roi/ Où l'amour sera loi/ Où tu seras reine ." (Ne me quitte pas - Édith Piaf). O mesmo seja dito de: "Felicidade é viver na sua companhia/ Felicidade é estar contigo todo dia." (Felicidade - Seu Jorge). Ou, ainda: "Deixa eu dançar pro meu corpo ficar odara."/ "Deixa eu cantar que é mundo ficar odara. (Caetano Veloso - Odara).

Portanto, sejamos sábios na escolha do caminho que desejamos trilhar, pois como já sabemos, a vida não tem roteiro e recebemos um único papel para escrever sobre ele como conjugamos o verbo viver, com quem conjugamos este verbo e em quais circunstâncias se dará a referida conjugação.